Hipervigilância: a liberdade vigiada e o despertar da Cidadania Digital

Por trás da interface amigável de aplicativos “gratuitos” e serviços personalizados, uma infraestrutura de vigilância invisível se consolidou. A maior ameaça da hipervigilância não reside no que vemos, mas precisamente naquilo que não vemos. Neste novo artigo, o Diretor de TI do TCE-SP, Fábio Correa Xavier, trata diretamente dos dilemas da vigilância excessiva e aponta como caminhos essenciais de resposta a consciência cidadã dos usuários e inovação

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Por Fábio Correa Xavier*

A transformação digital prometeu um mundo de possibilidades ilimitadas, conectando pessoas, otimizando serviços e derrubando barreiras. No entanto, por trás da interface amigável de aplicativos “gratuitos” e serviços personalizados, uma infraestrutura de vigilância invisível se consolidou. A maior ameaça da hipervigilância não reside no que vemos, mas precisamente naquilo que não vemos. Ela opera em segundo plano, silenciosa e onipresente, nos induzindo a uma perigosa troca: conveniência por privacidade. Esse pacto desigual molda não apenas o mercado, mas o próprio exercício da cidadania.

 

O Dilema da Vigilância: Da Conveniência ao Controle

A base dessa nova ordem é uma indústria trilionária movida a dados. A infraestrutura global de Big Data e Analytics, que se alimenta de nossos rastros digitais, é o motor de uma economia extrativista. Projeções da Fortune Business Insights indicam que este mercado saltará de US$ 397 bilhões em 2024 para quase US$ 1.2 trilhão em 2032. Essa cifra não representa apenas tecnologia; representa a massiva estrutura econômica que depende da coleta contínua de dados pessoais para vender não apenas produtos, mas a nossa própria atenção.

 

Em trabalhos sobre a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no setor público, fica claro que a lei nos força a “acender a luz” sobre o tratamento dessas informações. A hipervigilância prospera na escuridão da falta de transparência. Mas essa vigilância não se restringe à esfera privada. É imperativo analisar o papel do Estado, que, historicamente detentor do monopólio da força, avança sobre o monopólio da informação. Sob a justificativa da segurança pública, tecnologias de reconhecimento facial e monitoramento em massa se proliferam, com 75% dos governos globalmente já investindo em IA para vigilância, segundo o Carnegie Endowment for International Peace.

 

No Brasil, essa realidade se materializa em projetos que, como aponta a Rede de Observatórios da Segurança, geram preocupações sobre erros e viés racial, operando em uma zona cinzenta de regulamentação. Emerge, assim, a questão fundamental: quem vigia o vigilante? A Constituição Federal, ao elevar a proteção de dados a direito fundamental, estabelece que qualquer medida de vigilância estatal deve ser necessária e proporcional. Não se pode aceitar que, para proteger o cidadão, o Estado precise primeiro despi-lo de sua privacidade.

 

A Resposta: Cidadania, Confiança e Inovação

A resposta a esse cenário não pode ser a paralisia. Ela começa com o indivíduo. A cidadania na era digital não pode ser um ato passivo; exige o “dever de saber”: saber quais dados são fornecidos, para qual finalidade e quais são os direitos do titular. O analfabetismo de dados é o maior aliado da vigilância. A LGPD é uma ferramenta poderosa, mas inútil nas mãos de quem não sabe como usá-la. A verdadeira transformação é a da mentalidade: passar da “coleta máxima” para a “necessidade mínima” e de uma postura de “cidadão-produto” para uma de “cidadão-titular” de seus dados.

 

Essa nova consciência cidadã cria uma demanda por um mercado diferente, onde a privacidade não é um obstáculo, mas a própria fronteira da inovação. Empresas que baseiam seus negócios na exploração de dados constroem sobre um terreno frágil. O futuro pertence às que adotam a “privacidade desde a concepção” (Privacy by Design) como núcleo de sua engenharia, como a Apple fez ao transformar a privacidade em pilar de sua marca. A adequação à LGPD não é um custo, mas um investimento em confiança — o ativo mais valioso na economia digital.

 

Nesse contexto, o setor público tem um papel que transcende a fiscalização: o de catalisador. Se o governo exige a interação digital, ele tem a corresponsabilidade de educar o cidadão. A transformação digital governamental não é sobre digitalizar processos, mas sobre capacitar o cidadão. Isso significa criar jornadas que o eduquem sobre seus direitos a cada passo, transformando cada interação com o Estado em uma aula prática sobre proteção de dados. Um “Painel da Confiança” em portais de serviço, mostrando com clareza o uso dos dados, transforma a obrigação legal em uma ferramenta de empoderamento.

 

O futuro que estamos construindo é um reflexo das nossas escolhas presentes. Optar por um ecossistema digital baseado na transparência, na ética e no empoderamento do indivíduo não é apenas uma questão de conformidade legal, mas uma decisão estratégica para a inovação e para o fortalecimento da própria democracia.

 

Convido você a refletir sobre como sua organização pode se preparar para essa nova era.

 

*Fábio Correa Xavier é Diretor da Diretoria de Tecnologia da Informação do TCESP.

 

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